Ao abordar questões europeias, é preciso lembrar que a construção europeia ainda está em andamento, com sua arquitetura peculiar subordinada a um processo evolutivo de longo prazo. Como é normal ocorrer com projetos inacabados, as partes constituintes, nacionais, não se encaixam adequadamente no desenho geral. Esta lacuna de consistência persiste, e pode até ser ampliada à medida que o próprio desenho do sistema evolui. Além das deficiências potenciais da arquitetura projetada, seu caráter inacabado pode representar uma grave ameaça quando desequilíbrios individuais se propagam causando fragilidades gerais. Em outras palavras, a construção europeia é caracterizada por um desenho em grande parte ainda não comprovado por sua evolução ao longo do tempo e pelo problema “transversal” decorrente do ajuste das condições nacionais heterogêneas ao acquis communautaire. A evolução da arquitetura está longe de ser o resultado unânime das abordagens nacionais, e as concessões necessárias deixam espaço para a persistência de amplos graus de discricionariedade e especificidades nacionais. No passado, problemas graves costumavam ser enfrentados por meio de reformas na arquitetura, levando por vezes, como no caso da União Econômica e Monetária, ao aprofundamento de alguns aspectos do processo de unificação. A recente crise poderia ter conduzido a um colapso na construção europeia, especialmente em sua última fase, caracterizada pela possibilidade de inadimplência da dívida soberana. Pelo contrário, no entanto, a resposta à falência do banco Lehman Brothers foi reafirmar a aceleração no processo de convergência sancionado pelo Tratado de Lisboa. A lição aprendida com a crise resultou na reformulação da arquitetura institucional europeia, e não apenas de sua esfera financeira. Objetivos comuns foram reorientados e o quadro institucional redesenhado, com o objetivo de alcançar uma discricionariedade nacional mais limitada e maior garantia do cumprimento das regras comuns. As reformas do setor financeiro devem, portanto, ser analisadas como parte da reformulação de todo o projeto. O desenho da UE deriva suas peculiaridades fortes da coabitação da soberania do Estado-membro com o objetivo de um mercado único. O fortalecimento da harmonização e da convergência exige necessariamente um processo político complexo, com os Estados-membros dispostos a transferir algumas partes da sua soberania para decisões colegiadas, tomadas cada vez mais sem poder de veto. A sabedoria do processo de decisão da UE encontra-se na busca da unanimidade ou da grande convergência, sempre que possível. As soluções de compromisso são, então, uma característica necessária da construção deste bloco econômico. Em tempos normais, é mais fácil para cada Estado-membro estar satisfeito com o balanço de seus próprios benefícios, embora a distribuição no interior da União possa não ser uniforme. Análogo ao processo de Minsky, é em tempos normais que a fragilidade da construção pode aumentar. Sem serem impulsionados por ameaças aparentes, os mecanismos de enforcement podem ficar significativamente aquém do avanço desejável no sentido da harmonização, deixando espaço para a acumulação de vários tipos de desequilíbrios. Quando a União ou parte dela é atingida por um choque, aquelas fragilidades podem mudar radicalmente a percepção de equilíbrios nacionais entre custos e benefícios, e de sua distribuição no interior da UE. A elevação do interesse nacional pode produzir sérios danos ao conjunto da UE. A recente crise representou tal choque, revelando as fragilidades acumuladas. A construção da UE como um todo repousa, então, na manutenção dos desequilíbrios econômicos, monetários e financeiros dentro de limites sociais e políticos aceitáveis, e na preparação de procedimentos de resolução suave quando eles ocorrerem. Os três pilares institucionais – o amplo pilar fiscal sob a égide do Semestre Europeu, o BCE e as autoridades financeiras de regulamentação e de supervisão – representam o resultado de concessões entre os “egoísmos” nacionais. Como a crise recente demonstrou, a eficácia do enforcement, do qual deriva sua credibilidade, repousa em sérios choques que não perturbam gravemente este equilíbrio frágil. Ela também deixou claro que o aumento das interconexões entre os países-membros provocou outras fraquezas individuais por toda a zona euro. A supervisão leve em alguns países gerou, direta ou indiretamente, externalidades negativas além das fronteiras, enquanto os desequilíbrios econômicos negativos e positivos contribuíram para o enfraquecimento da construção do bloco. O presente trabalho argumentou repetidamente a favor das tentativas de aumentar a convergência, principalmente por meio da homogeneização dos procedimentos e do fortalecimento dos mecanismos de enforcement. A construção da regulação e de supervisão financeira na UE requer medidas particularmente fortes para impedir que o setor financeiro gere tais externalidades negativas sérias que perturbem os equilíbrios elicados sobre os quais se apoiam as construções monetária e fiscal da Europa. Apesar de as reformas na arquitetura institucional estarem indo na direção certa, dúvidas podem ser levantadas, em linha com a abordagem internacional para a re-regulamentação financeira, sobre se os sistemas financeiros europeus ganharão a resiliência extraexigida pela peculiar construção europeia. De fato, a agenda internacional sobre as reformas financeiras não implica mudanças radicais da arquitetura anterior. Ela segue expressamente a mesma abordagem prudencial, procurando reforçar os seus mecanismos. O ponto é que os aumentos nas exigências de capital são considerados insuficientes e continuam a ser baseados em metodologias desacreditadas; as instituições financeiras continuarão a ser grandes demais para falir e para serem sanadas; uma vez que o setor não bancário continuará a ser regulamentado com uma abordagem suave, deixando a questão da conexão e do contágio intocados, o foco sobre os bancos dará lugar a novas formas de arbitragem regulatória; a ampla discricionariedade atribuída aos supervisores, com o problema da captura não resolvido, contribui para o seu status de regulador e para a incerteza regulatória. Os autores já argumentaram que as reformas em curso, com os respectivos custos extras, não reduzirão concretamente a fragilidade financeira sistêmica, e uma mudança radical na abordagem regulatória torna-se necessária. Dada a dependência dos sistemas financeiros europeus em relação aos bancos,estas reformas certamente aumentarão os seus custos regulatórios, provavelmente mais que em outros contextos caracterizados por um papel menos sistêmico no setor bancário. O setor bancário europeu já está pressionando por uma abordagem mais flexível, apontando o impacto desproporcional das exigências mais rigorosas sobre o já lento crescimento da Europa. É certamente impraticável para a Europa endurecer ainda mais os requerimentos para os bancos, uma vez que é altamente improvável que ela implemente padrões não bancários internacionais com regras mais rígidas. O setor financeiro vai continuar a representar uma ameaça séria em todos os países. Para a Europa, ele pode colocar em risco toda a sua construção. Para uma total compreensão das respostas europeias à crise, é importante delinear tanto as características mais marcantes do sistema financeiro europeu (seção 2) quanto as etapas mais recentes no processo de harmonização regulatória (seção 3), aprofundando-se na gestão e resolução das crises transfronteiriças, o que constitui um problema especialmente crucial para a União Europeia (UE) – seção 4. Uma breve descrição da crise na Europa desde a primeira fase de turbulência financeira até as crises de dívida soberana (seção 5) auxilia o entendimento das respostas regulatórias e de política (seções 6, 7 e 8). Uma análise do processo que levou ao novo desenho global coloca estas respostas na perspectiva mais ampla da consistência da arquitetura como um todo (seção 9). Algumas conclusões são finalmente propostas sobre a relevância das reformas financeiras para a viabilidade de toda a construção europeia e sobre os perigos decorrentes de uma abordagem para a re-regulamentação que parece incapaz de reduzir significativamente as fragilidades sistêmicas.

Montanaro, E., Tonveronachi, M. (2012). O sistema financeiro da Uniᾱo Europeia pόs-Lehman: respostas polίticas e regulatόrias. In As transformaçoes no sistema financeiro internacional (pp. 81-122). Brasilia : Instituto de Pesquisa Econốmica Aplicada.

O sistema financeiro da Uniᾱo Europeia pόs-Lehman: respostas polίticas e regulatόrias

MONTANARO, ELISABETTA;TONVERONACHI, MARIO
2012-01-01

Abstract

Ao abordar questões europeias, é preciso lembrar que a construção europeia ainda está em andamento, com sua arquitetura peculiar subordinada a um processo evolutivo de longo prazo. Como é normal ocorrer com projetos inacabados, as partes constituintes, nacionais, não se encaixam adequadamente no desenho geral. Esta lacuna de consistência persiste, e pode até ser ampliada à medida que o próprio desenho do sistema evolui. Além das deficiências potenciais da arquitetura projetada, seu caráter inacabado pode representar uma grave ameaça quando desequilíbrios individuais se propagam causando fragilidades gerais. Em outras palavras, a construção europeia é caracterizada por um desenho em grande parte ainda não comprovado por sua evolução ao longo do tempo e pelo problema “transversal” decorrente do ajuste das condições nacionais heterogêneas ao acquis communautaire. A evolução da arquitetura está longe de ser o resultado unânime das abordagens nacionais, e as concessões necessárias deixam espaço para a persistência de amplos graus de discricionariedade e especificidades nacionais. No passado, problemas graves costumavam ser enfrentados por meio de reformas na arquitetura, levando por vezes, como no caso da União Econômica e Monetária, ao aprofundamento de alguns aspectos do processo de unificação. A recente crise poderia ter conduzido a um colapso na construção europeia, especialmente em sua última fase, caracterizada pela possibilidade de inadimplência da dívida soberana. Pelo contrário, no entanto, a resposta à falência do banco Lehman Brothers foi reafirmar a aceleração no processo de convergência sancionado pelo Tratado de Lisboa. A lição aprendida com a crise resultou na reformulação da arquitetura institucional europeia, e não apenas de sua esfera financeira. Objetivos comuns foram reorientados e o quadro institucional redesenhado, com o objetivo de alcançar uma discricionariedade nacional mais limitada e maior garantia do cumprimento das regras comuns. As reformas do setor financeiro devem, portanto, ser analisadas como parte da reformulação de todo o projeto. O desenho da UE deriva suas peculiaridades fortes da coabitação da soberania do Estado-membro com o objetivo de um mercado único. O fortalecimento da harmonização e da convergência exige necessariamente um processo político complexo, com os Estados-membros dispostos a transferir algumas partes da sua soberania para decisões colegiadas, tomadas cada vez mais sem poder de veto. A sabedoria do processo de decisão da UE encontra-se na busca da unanimidade ou da grande convergência, sempre que possível. As soluções de compromisso são, então, uma característica necessária da construção deste bloco econômico. Em tempos normais, é mais fácil para cada Estado-membro estar satisfeito com o balanço de seus próprios benefícios, embora a distribuição no interior da União possa não ser uniforme. Análogo ao processo de Minsky, é em tempos normais que a fragilidade da construção pode aumentar. Sem serem impulsionados por ameaças aparentes, os mecanismos de enforcement podem ficar significativamente aquém do avanço desejável no sentido da harmonização, deixando espaço para a acumulação de vários tipos de desequilíbrios. Quando a União ou parte dela é atingida por um choque, aquelas fragilidades podem mudar radicalmente a percepção de equilíbrios nacionais entre custos e benefícios, e de sua distribuição no interior da UE. A elevação do interesse nacional pode produzir sérios danos ao conjunto da UE. A recente crise representou tal choque, revelando as fragilidades acumuladas. A construção da UE como um todo repousa, então, na manutenção dos desequilíbrios econômicos, monetários e financeiros dentro de limites sociais e políticos aceitáveis, e na preparação de procedimentos de resolução suave quando eles ocorrerem. Os três pilares institucionais – o amplo pilar fiscal sob a égide do Semestre Europeu, o BCE e as autoridades financeiras de regulamentação e de supervisão – representam o resultado de concessões entre os “egoísmos” nacionais. Como a crise recente demonstrou, a eficácia do enforcement, do qual deriva sua credibilidade, repousa em sérios choques que não perturbam gravemente este equilíbrio frágil. Ela também deixou claro que o aumento das interconexões entre os países-membros provocou outras fraquezas individuais por toda a zona euro. A supervisão leve em alguns países gerou, direta ou indiretamente, externalidades negativas além das fronteiras, enquanto os desequilíbrios econômicos negativos e positivos contribuíram para o enfraquecimento da construção do bloco. O presente trabalho argumentou repetidamente a favor das tentativas de aumentar a convergência, principalmente por meio da homogeneização dos procedimentos e do fortalecimento dos mecanismos de enforcement. A construção da regulação e de supervisão financeira na UE requer medidas particularmente fortes para impedir que o setor financeiro gere tais externalidades negativas sérias que perturbem os equilíbrios elicados sobre os quais se apoiam as construções monetária e fiscal da Europa. Apesar de as reformas na arquitetura institucional estarem indo na direção certa, dúvidas podem ser levantadas, em linha com a abordagem internacional para a re-regulamentação financeira, sobre se os sistemas financeiros europeus ganharão a resiliência extraexigida pela peculiar construção europeia. De fato, a agenda internacional sobre as reformas financeiras não implica mudanças radicais da arquitetura anterior. Ela segue expressamente a mesma abordagem prudencial, procurando reforçar os seus mecanismos. O ponto é que os aumentos nas exigências de capital são considerados insuficientes e continuam a ser baseados em metodologias desacreditadas; as instituições financeiras continuarão a ser grandes demais para falir e para serem sanadas; uma vez que o setor não bancário continuará a ser regulamentado com uma abordagem suave, deixando a questão da conexão e do contágio intocados, o foco sobre os bancos dará lugar a novas formas de arbitragem regulatória; a ampla discricionariedade atribuída aos supervisores, com o problema da captura não resolvido, contribui para o seu status de regulador e para a incerteza regulatória. Os autores já argumentaram que as reformas em curso, com os respectivos custos extras, não reduzirão concretamente a fragilidade financeira sistêmica, e uma mudança radical na abordagem regulatória torna-se necessária. Dada a dependência dos sistemas financeiros europeus em relação aos bancos,estas reformas certamente aumentarão os seus custos regulatórios, provavelmente mais que em outros contextos caracterizados por um papel menos sistêmico no setor bancário. O setor bancário europeu já está pressionando por uma abordagem mais flexível, apontando o impacto desproporcional das exigências mais rigorosas sobre o já lento crescimento da Europa. É certamente impraticável para a Europa endurecer ainda mais os requerimentos para os bancos, uma vez que é altamente improvável que ela implemente padrões não bancários internacionais com regras mais rígidas. O setor financeiro vai continuar a representar uma ameaça séria em todos os países. Para a Europa, ele pode colocar em risco toda a sua construção. Para uma total compreensão das respostas europeias à crise, é importante delinear tanto as características mais marcantes do sistema financeiro europeu (seção 2) quanto as etapas mais recentes no processo de harmonização regulatória (seção 3), aprofundando-se na gestão e resolução das crises transfronteiriças, o que constitui um problema especialmente crucial para a União Europeia (UE) – seção 4. Uma breve descrição da crise na Europa desde a primeira fase de turbulência financeira até as crises de dívida soberana (seção 5) auxilia o entendimento das respostas regulatórias e de política (seções 6, 7 e 8). Uma análise do processo que levou ao novo desenho global coloca estas respostas na perspectiva mais ampla da consistência da arquitetura como um todo (seção 9). Algumas conclusões são finalmente propostas sobre a relevância das reformas financeiras para a viabilidade de toda a construção europeia e sobre os perigos decorrentes de uma abordagem para a re-regulamentação que parece incapaz de reduzir significativamente as fragilidades sistêmicas.
2012
9788578111489
Montanaro, E., Tonveronachi, M. (2012). O sistema financeiro da Uniᾱo Europeia pόs-Lehman: respostas polίticas e regulatόrias. In As transformaçoes no sistema financeiro internacional (pp. 81-122). Brasilia : Instituto de Pesquisa Econốmica Aplicada.
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